Nas últimas semanas, em meio às tentativas de fazer decolar o
seu programa de concessões de rodovias, aeroportos, portos e ferrovias, o Governo Federal tem se esforçado para torná-las mais atrativas para o
setor privado. Modificações nas regras vêm sendo negociadas com empresas
interessadas (http://oglobo.globo.com/economia/portos-reuniao-da-ebp-com-empresas-gera-polemica-9798870),
garantias de “risco zero” são oferecidas aos bancos privados (http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/08/1332443-mantega-oferece-risco-zero-aos-bancos-para-tentar-salvar-leilao-de-ferrovias.shtml)
e até mesmo um prosaico “pito” foi aplicado às grandes empreiteiras por não
terem participado de um leilão (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/129893-empreiteiras-se-reunem-com-governo-e-levam-pito.shtml).
Esse relacionamento às vezes promíscuo entre o setor público
e o setor privado foi muito bem explorado num excelente artigo acadêmico
escrito recentemente pelos economistas Marcos de Barros Lisboa e Zeina Abdel
Latif (disponível infelizmente só em inglês: http://www.insper.edu.br/working-papers/working-papers-2013/democracy-and-growth-in-brazil/).
O argumento central dos autores é que o desenvolvimento
econômico e a política brasileira são marcados pela estratégia bem sucedida de
grupos de interesse privado em obter privilégios e benefícios estatais. A
literatura econômica denomina esse processo de rent seeking, ou seja, a busca de agentes privados de apropriar-se
da renda pública, muitas vezes por meio de mecanismos e negociações obscuras.
Fazendo uma homenagem ao clássico Os Donos do Poder, do jurista Raymundo Faoro, os economistas Lisboa
& Latif demonstram como o Estado impulsionou o capitalismo brasileiro procurando
solucionar os problemas de falhas de coordenação, falta de financiamento de
longo prazo para investimentos, baixa demanda de mercado e carências de
infra-estrutura, insumos e bens de capital. Para tanto, uma miríade de
políticas discricionárias, como proteções tarifárias e cambiais, incentivos
tributários, empréstimos subsidiados, controle de preços, transferências
monetárias não-orçamentárias, subsídios cruzados, etc., foi sendo implementada
por diversos órgãos governamentais, agências de fomento (Sudene, Suframa,
Sudeco, etc.) e bancos públicos (capitaneados principalmente pelo BNDES).
Criados sob o pretexto de serem medidas temporárias até que
os setores beneficiados adquirissem a envergadura necessária para “alçar voo próprio”, esses incentivos foram se tornando permanentes. Afinal de
contas, uma das características dessa estratégia de rent seeking é apresentar benefícios concentrados (ou seja, alguns
poucos agentes colhem os seus frutos), enquanto os seus custos são difusos – em
outras palavras, todos nós arcamos com o seu preço (com os tributos arrecadados
com “o seu, o meu, o nosso” dinheiro).
Se acrescentarmos a esse triste cenário o fato de que os
tratamentos especiais são concedidos por meio de um emaranhado de normas, baixíssimas transparência e participação popular na fiscalização e quase nenhuma prestação de contas pelos responsáveis,
tem-se um quadro perfeito para a ação de lobbies
desses grupos privados, que acabam se apropriando de parcela considerável dos
recursos públicos.
Diversos são os exemplos dessa prática de rent seeking no Brasil atualmente. A Receita Federal estima em R$
71 bilhões o volume de recursos que o Governo Federal abrirá mão em 2013 com
incentivos tributários e renúncia fiscal para setores específicos (http://www.sindifisconacional.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23195:renuncia-fiscal-de-2013-pode-superar-estimativa-da-fazenda&catid=45:na-midia&Itemid=73).
Outro exemplo é o chamado “Sistema S” (Sesi, Senai, Sesc, Senac, Sest, Senat,
Sebrae, Sescoop, etc.), um verdadeiro universo paralelo que tem natureza
pública por ser financiado por contribuições compulsórias cobradas da folha de
pagamento, mas é gerido pelo setor privado, reunido nas Confederações de
sindicatos patronais. E nunca podemos nos esquecer da ação pouquíssimo transparente
do BNDES, cujos empréstimos já passam de 11% do PIB, muitas vezes destinados a
grandes grupos privados brasileiros (os chamados “campeões nacionais”) e até
mesmo estrangeiros.
Os autores do artigo destacam que o jogo político brasileiro é, portanto,
caracterizado pela ação de minorias que buscam convencer os representantes
governamentais e até mesmo a opinião pública a implementar medidas que atendam
às suas demandas. Como os custos dessas medidas não são percebidos pela
população (pois são divididos por todos e cobertos pela nossa já elevada carga
tributária), é praticamente impossível romper esse quadro, que acaba
enfraquecendo nossa própria democracia. Nossa marca registrada é o privilégio –
palavra, aliás, que em latim significa “lei
privada”, o que é uma contradição em termos, pois a vocação de toda lei é
ser geral e abstrata.
E é nesse ponto que a economia encontra a política e, assim,
atinge o direito. Esses benefícios são obtidos junto à ação dos grupos
organizados sobre aqueles que elaboram as políticas públicas e aprovam as leis.
O ciclo se fecha quando esses agentes, buscando extrair a renda pública,
utilizam os recursos auferidos para financiar campanhas eleitorais, por meio de doações
lícitas e ilícitas. Uma vez eleitos, membros dos Poderes Executivo e
Legislativo que receberam doações desses grupos privados têm maior propensão a
defender seus interesses durante o exercício dos mandatos. E recomeça-se
então a ciranda entre lobbies, rent seeking, leis e políticas públicas
feitas sob medida para atender interesses privados e doações de campanha.
[Sobre esse assunto, vale a pena conferir o trabalho que
fizemos para o Movimento Nossa BH em que coletamos dados sobre os doadores
oficiais de campanha do prefeito e de todos os vereadores eleitos em 2012 em
Belo Horizonte (http://www.nossabh.org.br/up_artigo/de0su8fi6ki3.pdf).
A análise dos dados revela importante presença de construtoras, bancos e planos
de saúde entre os principais contribuintes.]
Pode-se argumentar que, pensando no desenvolvimento do
capitalismo brasileiro, os fins justificam os meios. Afinal de contas, o país se
industrializou, cresceu e no caso da grave crise financeira de 2008, foi essa
estratégia que nos permitiu superá-la.
Acontece que, antes de se pensar nos meios e nos fins, não se
deve perder de vista os princípios. E, sobre esse assunto, a Constituição Federal, em seu art. 37, preconiza o princípio da
impessoalidade na Administração Pública direta e indireta (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art3).
Também a Lei nº 8.666/1993 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm),
que regula as licitações e os contratos, em seu art. 3º exige respeito aos princípios
da isonomia – que é o oposto ao privilégio, a “lei privada”, pois em grego isonomia quer
dizer “lei para os iguais”. E já que começamos o artigo tratando de concessões,
nunca é demais destacar que essas estão sujeitas, por força do art. 175 da
Constituição (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art175),
à realização de licitações com regras impessoais e isonômicas.
Mas o que tudo isso tem a ver com as medidas provisórias?
Discutirei sobre isso na próxima postagem, mas ficam aqui duas pistas.
A primeira refere-se a duas postagens antigas deste mesmo
blog sobre o abuso (ou seria complacência?) na edição dessas normas de caráter
especial (http://www.leisenumeros.blogspot.com.br/2010/02/medidas-provisorias-abuso-ou.html
e http://www.leisenumeros.blogspot.com.br/2010/02/medidas-provisorias-abuso-ou_05.html).
Apesar de escritas em 2010, a situação permanece inalterada.
A segunda indicação é uma notícia veiculada no jornal Valor
Econômico de hoje, 26/09/2013 (http://www.valor.com.br/politica/3283790/camara-aprova-mp-que-chegou-com-17-artigos-e-saiu-com-66).
Nela percebe-se como o trâmite das medidas provisórias é propício à atuação de
grupos de interesses para “contrabandear” benefícios em meio ao caos da
tramitação legislativa.
Voltaremos a falar sobre isso em breve. Até lá!
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