quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Monopólio dos Correios - 2ª parte

A decisão do STF sobre o monopólio dos correios, que comecei a discutir algumas postagens abaixo, revela o quanto os conceitos jurídicos e econômicos podem ser distintos diante da realidade concreta.

Antes de começar a analisar os argumentos utilizados pelo STF, devo ressaltar que o Tribunal ainda não divulgou o inteiro teor de sua decisão. As conclusões abaixo baseiam-se tão somente nos resumos publicados ao longo do Informativos nº 392, 409, 510 e 554, publicados semanalmente pelo STF.

O placar da decisão foi de 5 votos pela improcedência da ADPF – ou seja, pela manutenção da exclusividade dos Correios na prestação do serviço postal – (Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Cármen Lúcia), 4 votos pela improcedência parcial (com fundamentos diversos, Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Carlos Britto) e um voto pela procedência total – ou seja, pelo fim do monopólio estatal (Ministro Marco Aurélio, relator).

Vamos aos argumentos do voto vencedor.

Para o Ministro Eros Grau, o serviço postal constitui um serviço público e não uma atividade econômica em sentido estrito. Essa terminologia é utilizada em Direito Econômico e Administrativo para distinguir as atividades em que o Estado atua como empresário (“atividade econômica em sentido estrito”), daquelas em que o Estado presta um serviço buscando cumprir uma finalidade pública, sob o regime de privilégio (“serviço público”).

Na atividade econômica em sentido estrito, o Estado produz um bem ou serviço em regime de concorrência (potencial ou efetiva) com o setor privado. É o que acontece no setor bancário, por exemplo, em que Caixa Econômica e Banco do Brasil concorrem com os demais bancos privados.
Já na prestação de serviço público, o Estado provê uma necessidade pública por meio de sua atuação direta ou licitando concessões ou permissões para o setor privado. Os casos mais comuns são os de transporte público municipal e de gás canalizado, previstos inclusive constitucionalmente.

Qual a grande consequência dessa distinção que aparentemente é apenas teórica? O Ministro Eros Grau considera que os serviços postais são um serviço público; logo, a União tem o privilégio de explorá-lo com exclusividade. Isso significa que as empresas privadas só poderiam prestar esse serviço se a União fizesse uma licitação concedendo sua exploração para as vencedoras. Como não o fez, na prática a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos tem o monopólio dos serviços postais.

Embora a leitura dos informativos não permita identificar ainda com precisão qual o alcance dessa decisão do STF, já é possível adiantar que, a nosso ver, o Supremo distanciou-se da realidade econômica. A proliferação de empresas de serviços de entrega e distribuição observada no mercado nas últimas duas décadas revela que esse mercado é amplamente competitivo. Aliás, os Correios já atuam em concorrência com as empresas privadas e, dada sua capilaridade no território nacional e sua tecnologia, lidera o mercado.

Também não há nenhum argumento aparente que justifique que a exploração de todo o serviço tenha que ser exercida pela União em regime de monopólio. De um lado, o argumento da segurança nacional (que parece ter inspirado a Lei nº 6.538/1978) perdeu validade com o fim do regime militar e o direito constitucional à privacidade. De outro, o atendimento a pessoas carentes e que vivem nos rincões do país, que poderia ser desprezado pelas empresas privadas, poderia muito bem continuar sendo exercido pelos Correios, como já acontece hoje.

A competência da União na "manutenção do serviço postal" (CF, art. 21, X) poderia ser melhor alcançada com a concorrência entre os Correios e as empresas privadas sendo regulada por uma Agência de Serviços Postais, por exemplo. Como acontece no setor bancário, em que bancos públicos e privados disputam o mercado, sendo supervisionados pelo Banco Central.

Em síntese, não há motivos aparentes para entender porque o STF considerou que os serviços postais são um serviço público, e não uma atividade econômica em sentido estrito. Caso optasse pela segunda classificação, o Supremo teria dado um grande passo para referendar a concorrência nesse mercado tão relevante.

Pelo visto, prevaleceu a ideologia do Estado superpoderoso. Ideologia, aliás, que está evidente no seguinte trecho do voto do Ministro Eros Grau, que foi citado nos informativos nº 392 e 554: “haver-se-ia de exigir um Estado forte e apto a garantir a todos uma existência digna, sendo incompatível com a Constituição a proposta de substituição do Estado pela sociedade civil”.

Nada contra a visão de que o Estado deve ser forte para garantir a todos uma existência digna. Mas daí a concluir que isso deve ser conseguido por meio do monopólio estatal na entrega de correspondência vai uma grande distância.

Vamos esperar a publicação do inteiro teor das discussões do STF para verificar se há outros argumentos que justificam a manutenção do monopólio postal.

Se houve alguma novidade, prometo uma nova postagem. Até a próxima.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Leasing cambial - Terceiro capítulo

Como estou procurando demonstrar nas últimas duas postagens, o episódio do leasing cambial traz importantes ensinamentos sobre as relações entre direito e economia.

A consolidação da jurisprudência do STJ em repartir os custos da desvalorização entre ambas as partes, está longe de ser explicada apenas por uma possível aversão do órgão em tomar partido em questão tão complexa. A mensagem explícita nas decisões do STJ é que, ao final, tanto devedores quanto credores pecaram na forma como os negócios foram fechados nessa estória.

De um lado, os bancos falharam (e continuam falhando, aliás) na sua política de alertar seus clientes sobre os riscos do negócio. Aliás, o movimento de defesa do consumidor deveria cada vez mais centrar seus esforços nesta questão. Cliente bem informado tem melhores condições de fazer suas escolhas e de se precaver contra imprevistos futuros. No caso do leasing, claramente os bancos não cumpriram seu papel de informar.

Do lado dos clientes, entendemos que a visão que o STJ agiu corretamente em imputar custos ao comportamento no mínimo passivo (e muitas vezes irresponsável) de tomar crédito sem avaliar os riscos envolvidos no negócio. Não dá mais para considerar como um dogma a tese de que o consumidor é sempre hipossuficiente, sendo sempre prejudicado por cláusulas abusivas, contratos de adesão, etc. Ao decidir firmar um contrato como o de crédito, que envolve geralmente prazos longos, o consumidor deve estar ciente dos riscos do negócio e ser responsabilizado por eventos que possam vir a acontecer durante seu vínculo com o banco.

Outra lição trazida pela estória é como a incerteza jurídica prejudica o ambiente de negócios. Coletando os dados relativos às operações de leasing para pessoas físicas, verificamos que a insegurança gerada pelas discussões judiciais relativas à desvalorização cambial está estreitamente relacionada com o desempenho desse tipo de operação no mercado de crédito.

Embora o Banco Central só disponibilize os dados a partir de junho de 2000 (pouco mais de um ano após a desvalorização) verificamos que o leasing foi perdendo aceleradamente sua importância no mercado. Sua participação no crédito total para pessoas físicas cai de quase 15% em junho de 2000 para menos de 2% em meados de 2003.

Não é coincidência o fato de que só depois de consolidada a questão no STJ (a decisão do RE nº 401.021-ES, que marca a virada da jurisprudência, é de dezembro de 2002) é que os negócios começam a se recuperar, até atingir, em 2009, os níveis de antes da desvalorização cambial. Vale ressaltar que o mercado levou dez anos para se recuperar das intempéries trazidas pelas discussões judiciais a respeito da desvalorização cambial.

O gráfico abaixo é uma demonstração clara de como a insegurança a respeito das soluções oferecidas pelo ordenamento jurídico a problemas contratuais tem o poder de afetar o desempenho do mercado e, assim, do próprio desenvolvimento econômico.




segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Leasing Cambial - Segundo capítulo

Continuando a história sobre o leasing cambial...

Como vimos na postagem anterior, a severa desvalorização cambial no início de 1999 gerou uma série de questionamentos judiciais. Devedores de bancos que se valeram do leasing cambial para financiar seus automóveis correram para o Judiciário para tentar alguma forma de proteção contra o aumento de seu endividamento.

A tese dos devedores tinha fundamentos jurídicos relevantes. Para eles, a desvalorização cambial foi um acontecimento imprevisível e que gerou uma onerosidade excessiva para os devedores. Como o equilíbrio econômico-financeiro do contrato foi quebrado, caberia ao Judiciário restabelecê-lo.

Nesse caso, os devedores pleiteavam a aplicação do art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor (aqui), que diz o seguinte:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Em outras palavras, os devedores queriam a modificação do contrato, para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Ou seja, que o Poder Judiciário alterasse o contrato, trocando seu indexador: sairia a taxa de câmbio, entraria algum índice de inflação (o IPC, por exemplo). Como consequência, o banco arcaria integralmente com o prejuízo da desvalorização cambial.

É interessante notar que essa questão da onerosidade excessiva decorrente de um fato imprevisível é antiga no Direito Civil; suas origens remontam ao fim do Império Romano e à Idade Média. Naquela época, a cláusula rebus sic standibus (“enquanto as coisas estão assim”) seria uma das exceções à regra geral do pacta sunt servanda (“o acordo é lei entre as partes”), um dos alicerces do direito contratual romano. Para essa “nova” teoria, as condições de um acordo poderiam ser revistas, desde que algo inesperado acontecesse que tornasse as condições extremamente desfavoráveis a uma das partes.

Apenas a título de informação, além do Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 (aqui) também incorporou a cláusula rebus sic stantibus, mas em condições bem mais rigorosas. É o que se vê pelo seu art. 478:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. (...)

Atenção para o cuidado que o legislador do Código Civil teve em qualificar bem a situação: a onerosidade excessiva deveria decorrer de “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis” e resultar em “extrema vantagem” para uma das partes. Já no CDC, fala-se apenas em “fatos supervenientes”. Não há menção, portanto, à imprevisibilidade e à extraordinariedade.

Mas voltando para a questão do leasing cambial, a tese dos clientes/consumidores/devedores a princípio ganhou amparo no Poder Judiciário. Tanto que o Superior Tribunal de Justiça, órgão responsável por uniformizar a interpretação da legislação infra-constitucional federal, proferiu algumas decisões acolhendo a teoria de que os custos com a desvalorização deveriam ser arcados pelos arrendadores/bancos/credores.

Veja, a respeito, a decisão do Recurso Especial nº 268.661-RJ (veja aqui), de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que cita diversos outros precedentes do STJ.

Na defesa de seus interesses, os bancos argumentavam o seguinte:
1) Que a operação de leasing cambial não era uma relação de consumo e, portanto, não se aplicava o art. 6º, V, do CDC.
2) Por não se tratar de relação de consumo, os consumidores deveriam demonstrar que a desvalorização ocorreu de maneira imprevisível.
3) Que à época da celebração dos contratos havia claros sinais de que a política cambial brasileira era insustentável, e que em algum momento o governo seria forçado a desvalorizar o real.
4) Que mesmo cientes da grave conjuntura macroeconômica, os clientes decidiram assumir o risco e firmaram contratos indexados ao dólar.
5) Que a alteração do índice de reajuste dos contratos causaria graves prejuízos aos bancos, que buscaram os recursos para as operações no exterior.

A força dessa argumentação acabou levando, posteriormente, o STJ a flexibilizar seu entendimento. Passou-se a decidir que os custos deveriam ser igualmente arcados entre clientes e bancos, numa decisão salomônica. O acórdão proferido no RE nº 401.021-ES (aqui) tornou-se paradigmático na questão:

“LEASING. Variação cambial. Fato superveniente. Onerosidade excessiva. Distribuição dos efeitos. A brusca alteração da política cambial do governo, elevando o valor das prestações mensais dos contratos de longa duração, como o leasing, constitui fato superveniente que deve ser ponderado pelo juiz para modificar o contrato e repartir entre os contratantes os efeitos do fato novo. Com isso, nem se mantém a cláusula da variação cambial em sua inteireza, porque seria muito gravoso ao arrendatário, nem se a substitui por outro índice interno de correção, porque oneraria demasiadamente o arrendador que obteve recurso externo, mas se permite a atualização pela variação cambial, cuja diferença é cobrável do arrendatário por metade.”

Como resultado, houve um misto de rebus sic standibus com pacta sund servanda: nem se preservou os contratos integralmente (como queriam os credores), nem se afastou a incidência da variação cambial (como buscavam os devedores). Os contratos foram reajustados em 50% da desvalorização cambial no período, e fim de papo.

Na próxima postagem vou tentar discutir algumas questões sobre os impactos dessa decisão judicial no mercado. Até lá!

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Leasing Cambial - Segurança Jurídica e Crédito

Ainda estou devendo a conclusão sobre o julgamento do STF sobre o monopólio dos Correios.

Mas hoje vou mudar o assunto: quero comentar uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre leasing cambial, que ilustra bem as relações entre direito e economia no mercado de crédito. Vamos lá.

O leasing é um tipo de negócio jurídico bastante comum no exterior, que foi regulamento no Brasil pela Lei nº 6.099/1974 (veja aqui) . Por aqui ele assumiu o nome de arrendamento mercantil. Grosso modo, o leasing funciona assim:

1. A arrendadora (empresa de arrendamento mercantil ou banco múltiplo) adquire um bem a pedido do arrendatário (pessoa natural ou jurídica).

2. O bem adquirido pela arrendadora é cedido para o arrendatário, que lhe pagará prestações mensais pelo seu uso por um período determinado.

3. Ao final do período, o arrendatário tem a opção de adquirir a propriedade do bem, pagando pelo valor residual.

Graças a um tratamento contábil e tributário especial, o leasing é um negócio interessante para ambas as partes. Historicamente ele tem se mostrando uma forma de concessão de crédito de longo prazo e com taxas de juros relativamente baixas, decorrentes do baixo risco da operação. O baixo risco advém do fato de que o bem não é transferido para o ativo do comprador antes do fim da operação. Só quando o arrendatário exerce sua opção de compra ao final da operação é que o bem passa a fazer parte do seu patrimônio - antes disso, ele pertence à arrendadora. Assim, em caso de inadimplência, o banco rapidamente recupera o bem, sem enfrentar as agruras de um moroso processo de execução judicial, que pode se arrastar por anos. Risco jurídico baixo, taxas de juros mais baixas.

A importância do arrendamento mercantil para a economia brasileira não é nada desprezível, haja vista que praticamente 9% de todo o crédito concedido no país é feito por meio de leasing.

O leasing é um instrumento utilizado para diversos fins, mas seu uso majoritário está relacionado às operações com veículos. Atualmente, 56,3% do total do saldo de operações de arrendamento mercantil realizadas pelo Sistema Financeiro Nacional são destinadas ao financiamento de veículos. E, nesse setor, ele assume grande participação: 43,8% de todo o crédito destinado para a aquisição de veículos no país é contratado por meio de leasing.

No entanto, não foi sempre que o leasing desempenhou essa pujança observada nos dias atuais. Durante a última década ele sofreu dois grandes golpes relacionados diretamente com a segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro: a maxidesvalorização cambial de 1999, que afetou os contratos de leasing indexados ao dólar, e a polêmica relacionada à natureza jurídica de um dos seus institutos, o valor residual garantido (VRG). A recente decisão do STJ que vamos comentar no próximo post tem a ver com a questão da desvalorização cambial. Em outra postagem tentarei discutir a questão do VRG.

Voltando um pouco na história econômica brasileira recente, um dos pilares do Plano Real foi a chamada âncora cambial. Por meio dela, o Banco Central realizava operações no mercado para manter o Real forte em relação ao dólar, com o objetivo de atrair recursos para o país e estimular importações. O plano era o seguinte: com a entrada de produtos estrangeiros com preços competitivos, os produtores nacionais não tinham como reajustar seus preços e a inflação mantinha-se sob controle. Para se ter uma ideia dessa política, o dólar variou entre R$ 0,84 (dez/1994) e R$ 1,20 (dez/1998) nessa primeira fase do Plano Real.

Essa relativa estabilidade da moeda americana estimulou a realização de operações de arrendamento mercantil referenciadas em dólar. O Conselho Monetário Nacional autorizou as instituições financeiras a captarem recursos no exterior e emprestá-los para os clientes, indexando o saldo devedor ao câmbio. Essa operação foi muito utilizada, principalmente pelas pessoas físicas, para a aquisição, via leasing, de veículos – pois a taxa de juros embutida nessa operação era significativamente inferior às taxas de juros disponíveis no mercado.

Tudo transcorria às mil maravilhas, com os bancos batendo recordes de operações de leasing, as montadoras de veículos idem (os níveis de produção alcançados em 1997/1998 só foram retomados em 2004) e os clientes satisfeitos com seus carros novos e sua dívida barata. Aí começa 1999, o Brasil sofre um ataque especulativo e é obrigado a abandonar a âncora cambial e autorizar a livre flutuação do câmbio.

Resultado: o dólar rapidamente subiu entre 50% e 70%, e com ele todas as dívidas de leasing indexadas ao câmbio. Imagine o cidadão que comprou seu Uno Mille (o carro mais vendido no país na época) por meio de uma operação de leasing cambial por R$ 20 mil, para pagar em vários anos. Da noite pro dia ele descobre que a dívida passou para R$ 30 mil ou 35 mil. Nem precisa dizer que a comoção foi geral. E, como resultado, choveu ações judiciais questionando essas operações de leasing.

No próximo post apresentarei os principais argumentos utilizados por clientes e bancos nesses processos, as consequências dessa insegurança no mercado e como o STJ decidiu salomonicamente a questão.

Vou tentar não ficar devendo mais essa. E honrar o compromisso de terminar a estória dos Correios.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Decreto nº 6.932 - Simplificando o Atendimento ao Público no Governo Federal

Uma das grandes novidades em termos legislativos da semana foi a edição, pelo Presidente Lula, do Decreto nº 6.932, de 11/08/2009. A publicação ocorreu no Diário Oficial de ontem e a íntegra da norma encontra-se aqui.

A proposta do Decreto é simplificar o atendimento ao público no Governo Federal, reduzindo o custo burocrático que é imposto aos milhões de cidadãos que lidam com o Estado brasileiro.

As principais novidades do Decreto são as seguintes:
1) O ônus por buscar informações de outros órgãos e entidades da Administração Pública Federal caberá ao próprio órgão solicitante. Isso demandará uma maior interligação dos sistemas de informação da administração, a fim de que o cidadão deixe de sofrer com o jogo de empurra entre diversos guichês de órgãos diferentes.

2) Os serviços de protocolo não poderão mais recusar a admissão de documentos, exceto quando o órgão por incompetente para tal.

3) A comunicação entre o órgão e o cidadão para complementar as informações ou prestar esclarecimentos poderá ser feita por qualquer modo, inclusive por ligação telefônica e correio eletrônico. Estimula-se, assim, a informalidade.

4) Regra geral, fica extinta a exigência de reconhecimento de firma perante a administração pública federal.

5) Os serviços de atendimento ao público deverão elaborar e divulgar uma "Carta de Serviços ao Cidadão", com informações como a descrição dos serviços oferecidos, os documentos exigidos, o prazo máximo admitido para o atendimento, as etapas para o processamento do serviço, etc.

Essas medidas podem ser encaradas como uma iniciativa do Governo Federal para desburocratizar o atendimento ao cidadão e a prestação de serviços.

Do ponto de vista econômico, o peso da burocracia representa um significativo custo para o ambiente de negócios, pois consome tempo e recursos que poderiam ser melhor empregados no desenvolvimento de mercados. É uma das dimensões dos chamados custos de transação.

Nesse quesito, não é de se admirar que o Brasil, o país dos despachantes, ainda tem muito a avançar. De acordo com o levantamento Doing Business 2009 (disponível aqui), iniciar um negócio no Brasil consome em média 152 dias, numa via crúcis que envolve 18 procedimentos. No ranking, ocupamos a 127ª posição mundial nesse quesito.

O peso da burocracia também se reflete na obtenção de um alvará para construção (em média 411 dias, 108ª posição no ranking), no registro de propriedades (42 dias, 111ª posição) ou em encerrar um negócio (4 anos, 127ª posição).

Como podemos ver, a burocracia afeta diretamente o ambiente negocial no Brasil, representando um custo extra que é suportado por toda a sociedade.

A iniciativa do Decreto nº 6.932, publicado ontem, representa um pequeno passo na direção de um Estado mais eficiente e amigável com os cidadãos. Resta saber se ele será cumprido por todos os órgãos e se constitui o início de um pacote de mudanças de combate à burocracia ou apenas uma medida isolada.

Ainda sobre a Justiça Federal

Ainda a respeito da postagem sobre a Lei nº 12.001/2009, que expandiu a estrutura da Justiça Federal, faltou mencionar que um dos principais fatores responsáveis pelo crescimento do aumento dos novos casos na Justiça Federal é a própria desordem normativa provocada pela União.

Grande parte da litigância contra a União deve-se a planos econômicos mal formulados, ao caótico emaranhado da legislação tributária, a regras efêmeras sobre pessoal, etc.

No caso da Justiça Federal, podemos aplicar a famosa lei de Say, um clássico dos primórdios da teoria econômica: a oferta do Estado (de absurdos legislativos) cria a sua própria demanda (de ações judiciais futuras).

Esse é mais um campo de melhoria das agruras do sistema judicial brasileiro. Mas é um dos mais difíceis de ser alcançado no médio prazo.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

ADPF 46 - O monopólio dos Correios - Primeiro Capítulo

Na última quarta-feira, 05/08/2009, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que contestava o monopólio dos Correios.

A ação havia sido proposta pela Associação Brasileira das Empresas de Distribuição - Abraed e pretendia que o STF julgasse declarasse que o monopólio estatal estabelecido pela Lei nº 6.538/1978 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Vamos traduzir o juridiquês, antes de adentrar no mérito da disputa judicial: Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF é um tipo de ação prevista na Constituição (art. 102, § 1º) e regulamentada pela Lei nº 9.882/1999 (clique aqui). Ela tem duas utilidades: i) evitar ou reparar lesão a preceito constitucional provocados por atos do Poder Público ou ii) quando houver controvérsia se uma lei ou outra norma federal, estadual ou municipal está em desacordo com a Constituição, mesmo que tenha sido editado antes da Constituição. Trata-se de um dos vários meios previstos na legislação brasileira para o Supremo Tribunal Federal proteger a ordem constitucional contra possíveis agressões provocadas por leis ou outros atos do Poder Público.

A ADPF nº 46, prevista pela Abraed, se valeu justamente da segunda hipótese de cabimento de uma ADPF. Ela questionou que a concessão de monopólio estatal para a distribuição de cargas, cartões postais e malotes, estabelecida pela Lei nº 6.538/1978 (portanto, anterior à CF/1988) não estaria amparada pela nova ordem constitucional, que está baseada na livre iniciativa e na livre concorrência.

Vamos descer agora aos detalhes. O que diz a Lei nº 6.538/1978 (clique aqui)?

Fazendo uma alusão com o sistema de classificação biológica (taxinomia), temos que serviços postais são uma família, da qual objetos de correspondência, valores e encomendas são gêneros. Já as espécies de cada um dos gêneros estão definidas em cada um dos parágrafos do art. 7º da lei.

Art. 7º - Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento.
§ 1º - São objetos de correspondência:
a) carta;
b) cartão-postal;
c) impresso;
d) cecograma;
e) pequena - encomenda.
§ 2º - Constitui serviço postal relativo a valores:
a) remessa de dinheiro através de carta com valor declarado;
b) remessa de ordem de pagamento por meio de vale-postal;
c) recebimento de tributos, prestações, contribuições e obrigações pagáveis à vista, por via postal.
§ 3º - Constitui serviço postal relativo a encomendas a remessa e entrega de objetos, com ou sem valor mercantil, por via postal.


E o que está amparado pelo agora tão falado monopólio postal dos Correios? Todas essas formas de serviços postais? A resposta é não, e está definida no seguinte dispositivo da mesma lei:

Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:
I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:


Daí vemos que a citada Lei estabele uma exclusividade de exploração, pela União (no caso, pelos Correios, empresa pública criada com esse fim), apenas para as atividades de carta, cartão-postal e correspondência agrupada.

Os serviços postais de encomendas, valores e impressos em geral (entrega de revistas, jornais, etc.) sempre estiveram a salvo do monopólio dos Correios. E foi por isso que as empresas de distribuição (Fedex, DHL, Variglog, Tam Express, etc.) floresceram nos últimos anos no país.

Mas então o que as empresas associadas à Abraed buscaram com a propositura da ADPF nº 46 no STF? Buscaram questionar o monopólio dos Correios inclusive em relação às cartas, cartões-postais e correspondências agrupadas (os famosos "malotes" das pessoas jurídicas).

Toda a disputa gira em torno do conceito de carta. Para a Lei nº 6.835/1978 a definição é a mais ampla possível:

Art. 47º - Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
CARTA - objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário.

O que a Abraed queria? Sua intenção era que o STF reduzisse esse conceito para o mínimo possível, conforme pode ser visto em um trecho de sua petição inicial (que está disponível aqui):

“[Pede] declarar o que se entende por carta, que por motivos de segurança e privacidade, continuam sendo prerrogativas da argüida [ou seja, continue sendo monopólio do Correios], restringindo tal conceito de carta ao papel escrito, metido em envoltório fechado, selado, que se envia de uma parte a outra, com conteúdo único, para comunicação entre pessoas distantes contendo assuntos de natureza pessoal e dirigido, produzido por meio intelectual e não mecânico, excluídos expressamente deste conceito as conhecidas correspondências de mala-direta, revistas, jornais e periódicos, encomendas, contas de luz, água e telefone e assemelhados, bem como objetos bancários como talões de cheques, cartões de crédito, etc.”

Fica evidente, portanto, que a intenção das empresas de distribuição é reduzir uma exclusividade que foi devida por lei como sendo dos Correios. Se o STF reduzisse o conceito de "carta" para uma correspondência estritamente pessoal (daquelas que ninguém escreve mais, em tempos de email e celular) , abrir-se-ia um imenso mercado para essas empresas roubarem um naco daquilo que hoje, legalmente, é exclusivo dos Correios.

Temos aí um interessante caso em que uma disputa judicial centra-se na dúvida sobre se um mercado é ou não objeto de um monopólio estabelecido por lei.

Nas postagem seguintes exploraremos melhor o tema.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Lei nº 12.011 - Expandindo a Justiça Federal

Foi publicada anteontem, 05/08/2009, a Lei nº 12.011. A lei cria 230 varas da Justiça Federal. A intenção do Poder Judiciário é incentivar a interiorização da Justiça Federal no país e ampliar o atendimento dos Juizados Especiais Federais.

Vamos às explicações. A prestação da justiça pelo Poder Judiciário brasileiro é “dividida” administrativamente em especialidades, de acordo com alguns critérios. O ramo do Direito é um deles. Por isso temos, por exemplo, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar – essa mais relacionada a um critério pessoal (militares). Para as causas consideradas “comuns”, por não se enquadrarem na competência específica das Justiças especializadas, temos a chamada Justiça Comum. Mas essa Justiça “comum” também tem uma diferenciação: a Justiça Federal e a Justiça dos Estados.

A Justiça Federal se destaca na organização do Poder Judiciário por julgar as causas envolvendo a União, suas autarquias e empresas públicas. Existem outras atribuições (explicitadas no art. 109 da Constituição Federal, que você pode consultar aqui), mas essa é a mais marcante. Sendo assim, sempre que a União for autora ou ré, ou mesmo terceira interessada em uma ação, quem a julgará será um juiz federal.

Na estrutura da Justiça Federal, a Lei nº 10.259/2001 (clique aqui) criou os Juizados Especiais Federais, destinados a julgar causas cíveis cujo valor seja inferior a 60 salários mínimos (R$ 27.900,00 hoje) e ações criminais de menor potencial ofensivo que sejam de competência da Justiça Federal. Esses processos têm um rito mais simplificado, buscando conferir maior celeridade e efetividade à prestação da Justiça.

Para se ter uma ideia da importância da Justiça Federal, no ano de 2008 foram protocoladas em primeira instância 1.827.561 novas ações, incluindo os Juizados Especiais. Isso representa 8,5% de todas as novas ações iniciadas em 2008 nas Justiças Estadual, do Trabalho e Federal (que são as mais representativas. Esses dados foram extraídos do excelente trabalho feito pelo Conselho Nacional de Justiça, nos seus relatórios anuais denominados Justiça em Números (que podem ser consultados aqui).

Mas o que representa a nova lei para melhorar a celeridade e a efetividade do Poder Judiciário? Em termos de número de varas, as 230 a serem criadas nos próximos 5 anos representam uma expansão de 31% sobre as já existentes (incluindo os Juizados Especiais). De acordo com dados do Conselho da Justiça Federal (confira aqui), em 31/12/2008 havia no país 727 juízes titulares (com 16 cargos vagos) e 616 substitutos (sendo 127 vagos). A nova lei incorpora a esse contingente mais 230 titulares e 230 substitutos. Trata-se de um número bastante significativo.

Um juiz federal no Brasil, atuando em primeira instância, era responsável, no final de 2008, por 1.410 processos pendentes em média. Nos Juizados Especiais, por lidarem com causas mais simples, a média era de 4.079 processos pendentes por magistrado. São números alarmantes. No ano passado, cada juiz emitiu em média 475 sentenças, enquanto nos Juizados Especiais foram solucionados em média 4.805 casos por juiz. O problema é que, em 2008, entraram em média 574 novos processos para cada juiz de primeira instância e 5.042 para cada juiz nos Juizados Especiais. Ou seja, na situação atual é praticamente impossível zerar o estoque.

A nova lei é a segunda expansão na Justiça Federal em seis anos. Antes dela, a Lei nº 10.772/2003 (veja aqui) já havia criado 183 novas varas, a maioria nas principais cidades do interior do país. Mas, diferentemente da anterior, essa apresenta algumas interessantes novidades.

A primeira delas é não definir, a priori, as localidades que receberão as novas varas federais. Tal tarefa ficará a cargo do Conselho da Justiça Federal (http://www.jf.jus.br/cjf). O CJF é um órgão de supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal, criado pela Lei nº 11.798/2008 (consulte aqui) . Teoricamente, é o órgão que mais conhecimento detém sobre as necessidades da Justiça Federal. Logo, a ideia de conferir a ele a missão de definir onde estão as carências a serem supridas pelas novas varas parece interessante.

Outra novidade da nova lei é que a escolha da localização das novas varas deve atender a critérios objetivos, como “a demanda processual, (...) a densidade populacional, o índice de crescimento demográfico, o Produto Interno Bruto, a distância de localidades onde haja vara federal e as áreas de fronteiras consideradas estratégicas”. Com base nesses indicadores, a escolha das localidades poderá ser mais adequada à reais necessidades da população jurisdicionada.

Por fim, a instalação das varas se dará de maneira gradual, à taxa de 46 novas varas a cada ano, começando em 2010 e terminando em 2014. Dessa forma, permite-se que a expansão se dê de forma ordenada, conferindo tempo para os ajustes administrativos, inclusive a realização dos concursos públicos.

Mas qual será o impacto financeiro da instalação das 230 varas federais? Embora não tenha sido possível encontrar essa informação nos dados sobre a tramitação do projeto de lei nos sites da Câmara e do Senado, é possível fazer uma estimativa.

Os rendimentos dos magistrados, servidores e cargos comissionados da Justiça Federal encontram-se disponíveis no site do Conselho da Justiça Federal (consulte aqui). Multiplicando pelos cargos criados, chegamos à conclusão de que, quando instaladas todas as 230 varas federais, a despesa crescerá em quase R$ 600 milhões por ano, apenas com os servidores (não estão computados os investimentos necessários para sua instalação e os gastos do custeio). Cada vara custará aos contribuintes brasileiros quase R$ 200 mil por mês, ou mais de R$ 2,5 milhões por ano. Certamente um valor bastante considerável.

O que podemos concluir dessa análise é que a Lei nº 12.011, publicada anteontem, procura oferecer um tipo de solução para os problemas de lentidão e ineficiência do Poder Judiciário brasileiro. Ela busca saída por meio da expansão do número de magistrados e do corpo técnico que os auxilia (mais de 8.000 novos cargos). Isso tem um impacto financeiro elevado para os cofres públicos.

Resta avançar mais firmemente nas reformas gerenciais (a Justiça eletrônica promete revolucionar o sistema brasileiro) e na reforma da legislação processual. Apesar de mais trabalhosas, prometem resultados mais duradouros e baratos no longo prazo.